quarta-feira, 25 de abril de 2012

O dia em que o meu país mudou para sempre



Foi no dia em que o meu país mudou para sempre.
Tinha chegado de Angola, da guerra, há 3 semanas. Os meus superiores mandaram-me para casa, após 2 anos e meio a ver a morte a dançar ao meu lado, à minha frente, nas minhas costas, nas minhas pernas e braços...
Quando cheguei a casa, sobre a mesa havia, para comer, a fome e o medo.
O meu pai e os meus tios estavam, outra vez, a ser interrogados pela PIDE, há dois dias que não apareciam em casa. No final, regressam porque não há provas que os incriminem de serem comunistas ou de andarem a distribuir panfletos pelas aldeias ou simplesmente por roubarem um naco de pão ao senhor mais rico da região. Mas desta vez ainda não tinham regressado.
A minha mãe sentada numa banca de madeira, a ouvir a telefonia, na esperança que as vozes do outro lado pudessem saciar a fome ou acalmar o medo.
Da guerra não trouxe nem mil escudos, nem uma pensão.
Da guerra trouxe dores e imagens de sangue e napalm, trouxe gritos e corpos mutilados.
Da guerra trazia um vazio e um silêncio olímpicos. Um silêncio de pó e de lama e de terra, espesso, cruel, duro, maciço, de morte.
A minha mãe olha para mim e vê-me com uns olhos que só as mães têm : a compreensão. Mãe.
O seus braços no meu corpo, ou naquilo que parecia ser o meu corpo, as suas lágrimas na minha face, lágrimas que diziam muitas coisas de mãe, que me diziam palavras iguais àquelas que ouvia quando era pequeno e tropeçava - pronto, já passou, coitadinho. Aquelas lágrimas eram quase um antídoto, porque depois da guerra deixei de ser filho e menino. Depois da guerra.
Mas a guerra passou sobre mim e continua mãe... A guerra continua... e dói... Dói muito.
Trago em mim uma doença que me corrói e me trespassa a todo o momento de sangue e ferro e suor e tonturas e sangue e suor e tonturas e tonturas tonturas tonturas e fraquezas fraquezas fraquezas.
O meu amigo Maia disse-me que havíamos de mudar o estado do país, que era um estado sem jeito algum, que era um estado ridículo. Ambos fizemos a promessa que não iríamos matar mais ninguém. Em nome de quem e do quê é que matávamos? Que pátria, que império era esse que o Estado tanto defendia? Que Portugal era aquele onde vivíamos? Porquê manter a ideia de um império que nunca existiu verdadeiramente?
Mas era de noite e a minha mãe abraçava-me e via-me e sabia. Ela sabia.
A minha mãe abraçava-me e o mundo não mudava, tudo era indiferente e tragicamente igual.
Nessa noite, o Maia ligou-me e falou-me que a revolução estava em curso, que já avançava em direcção a Lisboa com os blindados.
Como uma luz grande que não ofusca e revitaliza, o meu corpo volta a ser o meu corpo e ganho forças, mesmo que escute em mim os bombardeamentos da memória.
A minha mãe ajuda-me a vestir a farda, e de madrugada, pedimos o carro ao vizinho, o Tavares da taberna, e vamos a voar para Lisboa, eu e o primo Adérito. A minha mãe, com um sorriso esboçado no rosto, vai para a casa da vizinha e conta-lhe a novidade. Mãe. Lembrar-me-ei de ti para sempre.
O tempo parece parar enquanto voamos até Lisboa.O carro parece saber o que nos move, o motivo de tanto euforia.
Já às portas de Lisboa encontro-me com o meu amigo Salgueiro Maia, cumprimentamo-nos. Ele olha-me e volta-me a olhar e, apesar de tudo, sabe que sou eu,mesmo que a guerra continue dentro do meu peito.
Camarada, hoje é o dia da nossa revolução! É hoje!
Eu a sorrir e a abraçar o meu amigo. A abraçá-lo para sempre.Porque há gestos e momentos que são para sempre.
Depois, os blindados pela cidade, no Terreiro do Paço, no Largo do Carmo. Depois as pessoas a sair à rua, a gritar LIBERDADE!
E a guerra no meu peito, o napalm, o mato, os amigos que perdi... A guerra.
Mas hoje, 25 de Abril de 1974, o país acordou de um coma de quase meio século.
O senhor presidente do Conselho demite-se. O regime caiu.
Do cano das espingardas e dos blindados nascem cravos vermelhos e perfumes de futuro.
É nesse momento que no meu peito se ouve uma explosão enorme no lado do coração. Talvez uma granada que caiu numa caixa de explosivos. O meu coração pára e parece doer muito. A guerra.
Numa questão de momentos, o tempo pára, tudo fica imóvel e eu vejo todos os momentos do país, do mundo que eu vivi.
A minha mãe, o meu pai, os meus tios.
A Maria Adelaide, a quem tinha pedido em casamento antes de ir para a guerra.
A fome, a miséria, o medo. A PIDE.
A guerra.
Os meus amigos, as noites de fado, os copos de vinho.
A recruta, o mato, a praia. Luanda.
A guerra.
Agora há um silêncio enorme, de paz, que não dói. A guerra acabou! Há Liberdade e vejo o meu amigo Maia a caminhar com a certeza que a Liberdade e a Democracia são possíveis.
Sorrio e naquele momento parece que me sonho e me sei feliz para Sempre. Aquele momento em que o meu coração parou foi um momento feliz para sempre.
Já não há mais guerra. Os homens parecem acreditar na Justiça e na Igualdade. Talvez a fome acabe.
O meu amigo Salgueiro Maia a caminhar pela rua, os blindados atrás dele. Os seus passos certos, definitivos.
Eu perdia as forças mas sorria sempre, porque agora era livre e sorria e chorava.
Morri nessa manhã.
Morri no dia em que o meu país mudou para sempre.

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