sábado, 30 de maio de 2015

Um pau de dois bicos

Enquanto nós, ocidentais, ocupámos os nossos dias com uma discussão leviana à mesa de jantar ou então numa esplanada do café sobre as questões mais supérfluas possíveis, eis que, do outro lado, as coisas levam um rumo um tanto diferente: questões de vida ou de morte, portanto.

Quanto muito desfolhar o jornal torna-se um despertar para a realidade, e aí já não podemos passar incólumes nem desviar as atenções ao Oriente (mais concretamente a questão do Iraque). Ora, se bem me recordo, há uns meses atrás escrevia sobre o número totalmente descabido de inocentes mortos no conflito sírio e sobre a indiferença com que a ONU abordava este assunto, pois nenhuma intervenção foi feita para que se evitasse uma guerra civil sangrenta em pleno século XXI.

Agora, eis que o interminável conflito entre o autoproclamado Estado Islâmico e o Governo Iraquiano se torna o epicentro no planeta Terra.
Depois de tantos avanços e recuos por parte dos jihadistas, uma importante reviravolta fez como que um despertar natural das atenções surgisse: a conquista de Ramadi, província de Ambar, levou, não só à morte de centenas de inocentes (que aliás continuam a ser o motivo de maior preocupação - o morrer sem saber porquê nem para que feito), mas também a uma ameaça real ao Governo Iraquiano.

O exército iraquiano fracassou por não ter evitado a derrota frente aos jihadistas e por isso teve que recuar no dia 17 de Maio. Perante estas adversidades, o governo vê-se forçado a recorrer ao pau de dois bicos para resolver a questão, isto é, aglomerar a nova coligação com as milícias xiitas ao exército iraquiano e às tribos locais poderá ser o quanto baste para recuperar Ramadi, mas também é uma séria ameaça no que toca ao confronto étnico entre a maioria sunita daquelas terras e a minoria xiita que já chamou a esta operação «Labaik ya Hussain», em memória Husayn ibn Ali, califa histórico e primo de Maomé, e que tem um intuito claramente provocatório aos sunitas.

Em suma, as guerras étnicas no Iraque parece que se hão-de prolongar durante muito tempo, levando os inocentes que desesperadamente tentam sobreviver no meio do caos, no meio da guerra e da miséria, enquanto nós, inconscientemente, somente mudámos a folha do jornal.

Álvaro Machado - 22:06 - 30-05-2015

segunda-feira, 25 de maio de 2015

O sucesso do FMI em Portugal

Sabendo que, à partida, o Fundo Monetário Internacional se havia tornado na última esperança para os portugueses voltarem a ver a luz do dia, e após tantos sacrifícios os membros do governo exaltarem esses mesmos feitos alcançados pelo povo lusitano, eis que o próprio FMI nos dá o primeiro alerta: afinal não é bem assim.

Os défices foram reduzidos e o financiamento do mercado recuperado. E depois disso? Quando se exalta um feito memorável, creio eu, ele irá perdurar no tempo infinitamente, mas será assim neste caso em concreto?
Ora vejamos: existem, segundo estes especialistas, cinco prioridades a médio-longo prazo:

1) Garantir um equilíbrio interno (que significa, por exemplo, não ter uma taxa de desemprego demasiado alta)

2) Conseguir um equilíbrio externo (não ter défices externos sucessivos)

3) Aumentar o crescimento potencial

4) Reduzir o endividamento dos privados

5) Assegurar a sustentabilidade orçamental

Então, tendo em conta estes cinco factores ou estas cinco prioridades, deparámo-nos, diria, com o primeiro fracasso deste programa de ajustamento – o insucesso.
E ao contrário do feito que exaustivamente os membros do governo proclamam (as vozes do PSD, entenda-se) no que toca ao desaparecimento, no exterior, dos défices, eis que o FMI emite um parecer na corrente oposta, afirmando a insustentabilidade dessas alterações, bem como se mantém tudo menos impressionado com o crescimento das exportações em termos brutos: «Não é prova de que Portugal tenha aumentado de forma significativa a competitividade», arrematam.

Pois bem, isto leva-nos a duvidar daquilo que até hoje alguns defenderam afincadamente como «único caminho possível». Se bem me recordo, as bandeiras de campanha para as próximas legislativas erguidas pela coligação têm sido, efectivamente, a diminuição do desemprego (que os dados do INE vieram deitar por terra tal teoria), o equilíbrio da balança (que vemos ter sido possível pela diminuição das importações, e que também curiosamente é um factor ilusivo porque num futuro próximo irão aumentar consideravelmente; e também pela falsa questão das exportações brutas, que vemos não ser algo viável), a melhoria das condições de vida (se internamente a população não tem poder de compra como poderá fazer a economia crescer e consequentemente melhorar as condições da população?)…

Já se diz, e bem, que nem tudo o que parece é. O (in)sucesso do FMI está à vista de todos.

Álvaro Machado - 00:47 - 25-05-2015

sábado, 23 de maio de 2015

Restaurante social no rés-do-chão da Igreja

Envolvemo-nos num silêncio profundo, submissos ao fundamento da vida, e deixámos o orgulho e a essência dos nossos sonhos num pequeno baú, imperceptível à grande maioria, como se fossemos enterrando lentamente o nosso próprio corpo.

Portugal, país que vi desde que abri os olhos e país que provavelmente irei ver até ao último suspiro, deixou-me agora um estilo de vida bem diferente daquele que em tempos havia encontrado no livro de Herberto Helder. Parece-me claro: tenho de admitir a vergonha, o embaraçoso destino fatalista que se me ergueu, a impureza, o marginalismo de ser pobre, de não ter dinheiro para pôr pão ou restos de comida à mesa.

O meu país - e os que indecentemente o fazem seu sem o sentir na verdade – tornou-me num intolerado, num homem de extremos, num vadio que se humilha todas as santas noites quando recorre àquela exígua sala do restaurante social, no rés-do-chão da Igreja. Como eu há milhares. Milhares que me pesam mais do que o eu estar ali comendo que nem um desvairado. Sinto-lhes a vergonha a subir no sangue, o coração numa batida tão veloz que parece iminente um ataque, e o ambiente pesado que os acerca é tão obscuro como quando nos sentimos abandonados ou esquecidos por alguém que amámos.

Os rostos lívidos diante dos meus olhos doem só de ver. As histórias que todas as noites oiço do vizinho que está desempregado há quatro anos, com os seus dois filhotes pequenitos e com a mulher internada há um mês deixam-me de rastos.

Eu, que não passo de um miserável, de um pobre sem rumo, todas as noites morro um pouco mais por dentro; todas as noites levo horas desperto porque tu, Portugal, não nos levaste só dinheiro nem nos privaste somente do trabalho ou de caprichos que eventualmente havíamos tido. Privaste-nos, isso sim, da nossa dignidade, do nosso orgulho, dos nossos sonhos que agora se encontram num baú pequeno sem possível abertura.

Portugal, não me humilhes mais, por favor.

Álvaro Machado - 21:48 - 23-05-2015