terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Fado Escrito por Pedro Delgado Alves

Crónica quinzenal do Secretário Geral da Juventude Socialista no Jornal i.


O sucesso da candidatura do Fado a Património da Humanidade serviu de forma fundamental para projectar uma visão transversal do Fado, aquela que melhor traduz a sua riqueza e complexidade, o seu papel insubstituível na leitura da história da cidade em que nasceu e a forma como serve de veículo de transmissão de uma vivência cultural lisboeta, portuguesa e, até certo ponto, lusófona. Eliminados os estereótipos que o assombravam, evidenciado o seu rejuvenescimento e valorizados os inúmeros trabalhos de investigação e esforços de preservação realizados, podemos pedir agora silêncio ao mundo, que vai cantar-se o Fado…
Apanhado durante anos entre quem o queria domesticar e associar de forma redutora a uma identidade conservadora e tradicionalista, não obstante ter sempre servido de veículo eloquente para a resistência e reivindicação pelas palavras cantadas, e entre quem, por reacção irreflectida a quem o procurou instrumentalizar, lhe virou as costas, o Fado conseguiu superar os obstáculos que se opunham à sua consagração na pluralidade e na diversidade.
Marginal e de má vida nas origens, soube conquistar o gosto aristocrático e passar por marialva, trocando a navalha pelo salão. Humilde e popular nas raízes, atraiu os versos mais eruditos, cantando poetas antigos e modernos e convocando todas as artes para o retratar. Inovador nas imagens, soube misturar sentidos, permitindo ouvir a cores as pinceladas de Malhoa, cheirar e provar o caldo verde nos olhos de alguma varina incógnita, ou sentir o dedilhar incessante da guitarra que lhe dá o ritmo e grande parte da sua alma.
No limite, porém, o Fado será sempre uma experiência pessoal de quem o ouve e associa à sua própria história. De quem nele encontra o sentimento da saudade e aí cristaliza uma certa leitura do que corresponde, para si, o ser português. De quem a ele chega pela voz imensa e poderosa de Amália Rodrigues, tomando-lhe o gosto e acabando por ficar, quem sabe enfeitiçado por um busto que quase personifica a República. De quem procura uma mensagem política e ouve como cantou o abandono dos presos em Peniche, como cantou o “Vento que Passa”, como até ajudou a cantar a resistência tropical a outras ditaduras…
Ou ainda de quem nele recorda as suas raízes e pensa na sua cidade. Nascido em Lisboa, filho de alfacinhas da Graça e de Alfama, com avós nascidos também em Alfama, quase me atrevo a afirmar que seria inevitável que os meus gostos ao Fado fossem parar. Poderei sempre lembrar-me do que o meu avô me dizia, que por ter a janela do seu quarto, no Largo do Chafariz de Dentro, virado para a rua da Parreirinha de Alfama, deveria ser das pessoas que mais Fado ouvira na vida. E ao lembrar-me disso sinto que sou um bocadinho (infinitamente modesto) do que se canta.
Ainda que possa hoje dizer que não é alfacinha nem português, mas antes cidadão do mundo, o Fado será sempre indissociável da cidade cujos becos e vielas vai cantando e cujo mapa vai desenhando nas suas palavras. Sem saber geografia, cruzamos Lisboa em vários fados, atravessando o mar da Palha num cacilheiro que nos leva a um cais que cheira a jornais, morangos e flores, subindo a um amarelo da Carris para percorrer a Alfama de colchas amarelas a brilhar sobre a cidade e nos levar depois à Mouraria, em busca dos pregões tradicionais (que, diz quem sabe, já não voltam mais), até chegarmos à velha casa que temos no Campo Grande. Olhamos para cima e uma gaivota traz-nos o céu da cidade menina e moça e mulher da vida de muitos, em que os versos de Ary dos Santos e a voz de Carlos do Carmo transplantaram uma bucólica imagem de Bernardim Ribeiro para uma experiência de ruas bizarras e agitadas de uma cidade à beira-Tejo…
Perdoem-me a presunção, mas digam lá se pode ou não escrever-se o Fado?
Secretário-geral da JS

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