segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Por Uma Reforma Administrativa que Responda ao País por Tiago Barbosa Ribeiro

A reforma administrativa do poder local é uma reforma necessária. A última grande reforma administrativa municipal foi implementada no século XIX, pelo que importa perceber as profundas transformações no nosso território que impõem a necessidade de alterações na nossa organização administrativa.

A reorganização do mapa administrativo, não só das freguesias, merece por isso uma reflexão. As opções a assumir neste domínio devem ser norteadas pelo espírito de servir melhor as populações e não podem ser dominadas pela imposição de soluções de forma esquemática e burocrática. 

Contra o simulacro de debate
O Governo PSD/PP iniciou este debate da pior forma. Fê-lo com um discurso na fronteira do autoritarismo por parte do ministro Miguel Relvas, que já em 2003 tinha assegurado a paternidade de uma reforma sem sentido, reforçando agora os tiques de um Governo deslumbrado com o seu próprio poder absoluto.

A discussão iniciou-se pelo «Documento Verde da Reforma da Administração Local», da responsabilidade do actual Governo, que pretendeu balizar de forma muito restritiva o debate sobre a reforma da administração do território. O documento deixou de fora temas centrais como a regionalização, o funcionamento das áreas metropolitanas ou o eventual agrupamento de municípios, amputando assim parte significativa dos temas que urge aprofundar.

Após a mobilização do poder local e das populações por ele servidas, o Governo recuou na sua proposta mas apresentou uma revisão que não resolve nenhum dos principais problemas identificados. Na realidade, produziu uma nova proposta que prevê a extinção entre 1.300 a 1.400 freguesias e uma agregação até 55 por cento das freguesias nas áreas urbanas e 35 por cento nas áreas rurais.

Trata-se de uma proposta de extermínio de freguesias sem qualquer sentido político, social, económico e histórico, não traduzindo nenhuma reforma administrativa mas sim a organização de novas unidades territoriais.

O simulacro de debate do Governo mereceu por isso uma ampla manifestação de repúdio a nível nacional, incluindo muitas estruturas do PSD e do CDS, autarquias e suas associações de organização e representação. Os agentes autárquicos recusam um debate artificial que está a ser feito à pressa pelo Governo, tendo por base dois argumentos fundamentais: os elevados custos do actual modelo e a necessidade de apresentar resultados aos parceiros internacionais.

A chantagem da troika e os custos que não o são
O Governo tem defendido a sua postura impositiva salientando os custos do actual modelo e a pressão das instituições internacionais no âmbito do memorando de entendimento. São dois argumentos completamente falsos.

Em primeiro lugar, os custos. Apresentar a reorganização das freguesias como um instrumento de poupança dos recursos públicos é demagógico e enganador. Na cidade do Porto, por exemplo, o financiamento nacional e municipal das actuais 15 Juntas de Freguesia não ultrapassa 4% do orçamento da Câmara Municipal do Porto. Em todas as restantes freguesias do país a realidade não é muito diferente. Isso revela bem que não é nesta instância da administração que pode e deve ser promovido o essencial das medidas de contenção da despesa pública.

A disseminação dos elevados custos do actual modelo, que na realidade nunca são apresentados nem em termos comparativos, visa apenas condicionar a opinião pública para uma adesão populista às teses do Governo, contrariando o putativo despesismo do poder local. Esquece, por seu turno, que na proposta do Governo os custos vão aumentar claramente com os novos presidentes de Junta a tempo inteiro.

Em segundo lugar, a pressão das instituições internacionais. A troika está a servir ora de álibi ora de chantagem para a desresponsabilização do Governo nesta matéria. A reforma administrativa do poder local não pode ser feita para garantirmos uma nota de rodapé numa conferência de imprensa.

Em lado nenhum do memorando de entendimento está referido o extermínio de freguesias, remetendo antes para uma reforma mais global que o Governo já deixou na gaveta, incluindo o sector empresarial local. Por outro lado, atendendo a matérias muito mais importantes em termos de impacto na despesa que o Governo também já abandonou, a começar pela TSU, certamente que o país terá mais tempo para esta reforma. Os técnicos da troika preferem seguramente uma reforma bem feita e assente numa lógica participada entre todos, avaliando com rigor os custos marginais do modelo proposto.

De resto, até já temos bons exemplos nesta matéria: a autarquia de Lisboa liderada pelo PS, por exemplo, não necessitou de nenhuma chantagem para avançar com uma grande reforma que foi aceite pelas freguesias e pelas populações, demonstrando ao Governo as linhas gerais de uma intervenção bem feita e com impacto real na organização do território.

As pessoas no centro do exercício do poder local
O poder local democrático é uma grande conquista das populações portuguesas e é com elas que esta reforma administrativa deve ser feita. Mais de um milhão de portugueses já teve responsabilidade em órgãos autárquicos desde 1974, contribuindo decisivamente para a qualidade e aprofundamento da nossa democracia.

A nossa democracia será melhor com um poder local racionalizado, eficaz e adaptado às exigências e expectativas de quem serve, mas não podemos transformar esses princípios em chavões que não traduzem nada de concreto, sobretudo se não percebermos a imensa diversidade social do nosso país.

Os geógrafos e sociólogos têm chamado a atenção para a realidade de um país dividido em três terços: um terço da população vive entre Braga e Aveiro, um terço vive entre Leiria e Setúbal e um terço vive no resto do território. Para adaptar a máquina administrativa a esta realidade, invertendo-a, o que menos importa é mesmo a fusão de freguesias.

Não é possível avançar com uma reforma administrativa menosprezando as populações e aniquilando a Junta de Freguesia como primeira e última instituição de contacto com a República e com o Estado, sobretudo no vasto mundo do interior. É uma postura fundamentada no Terreiro do Paço que ignora o papel das freguesias no actual contexto de crise, não só no exercício de funções de proximidade que o Estado central não pode ou não sabe cumprir da melhor forma, mas também como cimento simbólico da unidade nacional.

Que futuro para a reforma?
Só podemos aceitar uma reforma administrativa com objectivos claros para o território, com respeito pelas populações e sem uma pressa artificial nem maniqueísmos, salvaguardando alguns eixos fundamentais:

  • É importante incorporar a dimensão da reforma supramunicipal, ou seja, da regionalização. A reforma administrativa não pode ser isolada da escala de intervenção onde podem existir efectivas transformações na despesa pública e na relação dos órgãos de poder com o território. O associativismo de municípios nunca poderá substituir as competências da regionalização e esta reforma deve ser aproveitada para cumprir as disposições constitucionais sobre a regionalização.

  • Deve ocorrer em simultâneo com um reforço efectivo das competências e dos meios das Juntas de Freguesia, de modo a melhorar a resposta de proximidade às populações e permitindo a criação de verdadeiras autarquias de segunda geração.

  • Não podemos desrespeitar o vínculo identitário das populações com o seu território, não impondo mudanças artificiais que desestruturem essa relação. Mesmo alterando a escala dos órgãos municipais, a manutenção dos nomes das freguesias é um exemplo que não comporta quaisquer custos e, se necessário, preserva essa dimensão.

  • Temos de diferenciar critérios competentes para executar a reforma administrativa em contexto urbano e em contexto rural, preservando as necessidades das populações e o papel fundamental desempenhado pelas Juntas de Freguesia.

  • Devemos avançar em simultâneo com uma reforma da lei eleitoral e do sistema de governação dos órgãos autárquicos, fortalecendo a qualidade da democracia no poder local.

  • As várias autarquias devem elaborar os seus próprios estudos técnicos e promover um debate público, abrangente e descentralizado, envolvendo os autarcas, as populações e as forças vivas, que possa contribuir para tomar as opções políticas a assumir em matéria de reorganização do actual mapa administrativo.

Estas são algumas linhas fundamentais de uma reforma administrativa que responda ao país. Não é desconsiderar, em paralelo, que tenhamos um calendário mais alargado para o debate público de uma matéria tão sensível, que permita, designadamente, a auscultação dos cidadãos, das instituições e das autarquias e que conduza a uma decisão final partilhada.

Contra as inevitabilidades do Governo, que vão caindo uma a uma, cabe-nos assim liderar um debate racional e sem demagogias que promova uma reforma que não tenha de escolher entre eficácia e democracia, que sirva as populações e que não desestruture a relação do Estado com o seu território.

Para a semana:

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