sexta-feira, 4 de novembro de 2011

"Ajuste de contas"


Meus caros hoje sem a "inspiração" necessária para escrever um texto em condições, decidi partilhar convosco a crónica escrita pelo histórico Socialista, Manuel Alegre, publicada no Diário de Noticias.

A Europa está ameaçada, não pelo anúncio do referendo grego, mas pela ausência de democracia e solidariedade, pela deriva de um directório sem mandato nem legitimidade (como sublinhou, em Florença, Cavaco Silva), pela impotência da Comissão Europeia e por políticas, comandadas pela Alemanha, que provocam recessão, desemprego, empobrecimento, destruição do modelo social e desvalorização do mundo do trabalho. E também pela sobreposição de poderes não legitimados e sem rosto (mercados e especuladores) ao poder legítimo dos Estados, em dimensões nunca vistas. A democracia e a soberania estão sequestradas pelo poder incontrolado e desregulado do capital financeiro. Esta é a raiz da crise, da qual não se sairá enquanto se propuserem e impuserem soluções destinadas a preservar o sistema que a originou. O referendo grego não é uma causa, é um efeito e um revelador.

Repetem-se as mesmas receitas: supressão da procura e do crescimento internos, apoiadas na fé monetarista do BCE e na sua cruzada contra a inflação. Nem políticas fiscais e orçamentais comuns, nem um BCE com uma função adequada em matéria de emissão monetária, crédito e controle da taxa de câmbio, nem eurobonds como garantia mútua do endividamento europeu.

Em 2010, a UE absorveu quase 80% do excedente comercial alemão (56% para a Zona Euro). Apenas uma parte de 20% desse excedente alemão resultou de exportações para o resto do mundo. A França foi, de longe, o maior contribuinte do excedente alemão (29 mil milhões de euros de saldo favorável para a Alemanha nas trocas entre os dois países). Ao longo dos últimos anos, e sobretudo desde o surgimento do euro, este fosso foi sendo cavado e alimentado pelo recurso ao endividamento (público e privado) pela maioria dos países da UE, numa pirâmide de dívida que tem, no seu topo - sem surpresa -, os maiores bancos alemães. Ou seja, os mesmos que os actuais planos de resgate visam agora proteger, depois de anos a emprestar à tripa forra. A imprudência não veio apenas de quem pediu emprestado (a taxas de juro que eram inferiores à inflação, é bom lembrar), mas também de quem emprestou.

A Alemanha teve o mérito de saber prosperar à custa dos outros europeus, mas está na hora de o resto da Europa acordar, incluindo Portugal. Sem o conjunto das cigarras europeias (do qual fazem parte a francesa e a italiana, que estão agora aflitas), não haveria nenhuma formiga rica alemã.

O projecto de construção europeia - baseado na solidariedade de facto, do carvão e do aço até ao mercado interno e à moeda única - trouxe décadas de paz e de prosperidade partilhada ao velho continente. Poucos países beneficiaram tanto deste projecto como a Alemanha. Com muito mérito e esforço dos alemães, mas a verdade é que nada do que conseguiram teria sido possível sem os outros europeus.

O limite do tolerável está a ser ultrapassado. É o que explica o anúncio de um referendo na Grécia. Os que não têm nada a perder, para além da sua dignidade, podem sempre dizer não. Assim escreveu Miguel Torga: " Temos nas nossas mãos /o terrível poder de recusar".

Também Portugal deve trilhar o seu próprio caminho. Não o que defende o PM, empobrecimento da generalidade da população, destruição da classe média, degradação de serviços públicos essenciais como a saúde e a educação. Não tirando aos pobres e remediados para poupar os ricos, nomeadamente a banca. Não virando os trabalhadores do privado contra os funcionários públicos. Não privatizando as empresas públicas ao desbarato, em sectores de interesse estratégico nacional, como a água, nem desvalorizando os custos do trabalho para além do limite da dignidade de cada trabalhador.

Os ditames externos de austeridade não podem servir de pretexto para um ajuste de contas ideológico em Portugal, com o qual a direita sempre sonhou.

É tempo de compreender que este não é um ciclo político normal. O Governo está a aproveitar a crise para fazer uma revolução ideológica, conservadora e ultraliberal. Essa é a estratégia consagrada no OE. Ultrapassa a agenda da troika e põe em causa o consenso sobre o nosso modelo de organização democrática e social. Passos Coelho o disse, no Paraguai: "Temos de mudar o regime económico." Só que essa mudança significa uma mudança de democracia. O que já nada tem a ver com a consolidação das contas públicas nem com o interesse nacional. É um PREC de direita. Contra o qual têm de estar todos aqueles, em primeiro lugar os socialistas, que ajudaram a construir a nossa democracia.


Publicado em Meet The Garden State

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