domingo, 23 de dezembro de 2012

Feliz Natal! - Quase ficção


Foi no dia em que o meu avô começou a ficar doente. Quando o relógio antigo dava as três horas numa melodia de outros tempos, o meu avô começou a ser somente silêncio e ausência. Era um corpo de silêncio. Depois, sempre que o relógio tocava, ele dizia que as casas e as pessoas eram tristes às três da tarde. Alzheimer.
E assim chegou o primeiro sinal. Como o silêncio, o esquecimento crescia dentro do corpo que um dia fora o meu avô. Músico. Maestro. Vida.
Éramos meninas de vestido e de laço no cabelo, e acreditávamos em muitas coisas. Acreditávamos na Justiça e na Igualdade. A Verdade não existe. A Liberdade está para lá destas palavras. Iludimo-nos todos os dias e para sempre. Acreditávamos no meu avô e na música, porque ele vivia para a música. O silêncio dele era música e era Beethoven a crescer a crescer a crescer em notas de Primavera, enquanto Mozart vinha desflorar as amendoeiras. O meu avô era maravilhoso. Contava-nos histórias de um país onde não havia pão para comer nem jardins para ser livre. Dizia-nos que o mundo, quando ele era menino e moço, era como uma gaiola triste e sem luz. Ele prometeu-nos que nunca iríamos saber como foi o nosso país quando ele fora menino. Prometo-te, dizia-nos ele, que, enquanto eu for vivo e souber viver, nunca terás de ver o mundo como eu o vi. Ele falava-nos com palavras de menino, e nós entendíamos e éramos felizes. Éramos felizes porque acreditávamos nas palavras e no meu avô. Acreditávamos.
Mas passaram muitas primaveras sobre a música do meu avô. Agora a melodia é outra. O abismo parece chamar o meu avô, enquanto o silêncio orquestra a dança da morte ou de outra coisa qualquer.
Foi no dia antes da véspera de natal daquele ano em que o país do meu avô voltava a não ter jardins nem árvores para se poder respirar. A minha mãe era professora numa escola muito bonita, e nessa escola havia um grande jardim. É preciso cuidarmos do nosso jardim. Todas as escolas são bonitas. Sempre acreditei que a escola era uma caravela onde velejávamos para muitos sítios longes e maravilhosos. As armas e os barões assinalados… Hoje, quase que ainda consigo acreditar nisso. A minha mãe a chegar a casa. O meu pai, cego e maneta, a cuidar do meu avô. O meu avô a escutar o relógio e a dizer, com a boca cheia de leite e de bolachas, que as casas e as pessoas eram tristes às três da tarde. A minha mãe a chorar. Eu não sabia que as mães também choravam, porque eu pensava que as mães eram feitas de força e de alegria e de amor e de flores. As lágrimas também mentem. O meu pai a abraçar a minha mãe e a dizer-lhe para não ter uma visão tão pessimista, pois tudo havia de melhorar. O meu pai, que via com as mãos e com as palavras, a beijar a minha mãe e a vê-la por dentro. Amo-te. A minha mãe ficara desempregada e sem direito a qualquer subsídio. O Amor vence tudo. Mentimos no início. E no fim?
Este foi o segundo sinal. Desemprego.
Éramos quatro na casa dos nossos pais: o meu avô, a minha mãe, o meu pai e nós, meninas de seis anos com vestidos e laços no cabelo.
Na véspera de Natal, às três horas, enquanto o meu avô murmurava com o olhar fito na janela da sala, nós brincávamos com as bonecas que, um ano antes, o avô nos tinha dado. Era uma tarde mágica. Talvez. O saber que no dia seguinte era Natal fazia com que fôssemos mais felizes e crianças, eu e a minha irmã.
Entretanto, tocam à campainha uns senhores de fato e gravata com cara de assuntos sérios e importantes. Eram uns senhores que tratavam dos negócios das casas e das rendas, foi o que a nossa mãe nos disse. Mentir é também amar. Só me lembro que, no dia a seguir ao Natal, logo de manhã, a minha mãe e o meu pai começaram a arrumar as nossas coisas em caixotes e sacos. A minha irmã queria continuar a dormir, mas insisti tanto com ela que acabámos por ajudar os nossos pais. A minha irmã sempre foi mais preguiçosa que eu. Ainda agora o é. No final da manhã, restava a poltrona do meu avô e o piano velho e poeirento, pois já ninguém tocava músicas de Primavera nem de amendoeiras em flor.
Veio um senhor amigo do meu pai ajudar-nos a levar as caixas para uma carrinha, enquanto os senhores, aqueles com as gravatas de conversas sérias e importantes, faziam que não com a cabeça à minha mãe, enquanto ela parecia pedir-lhes alguma coisa com muita insistência. Com seis anos, já sabia ler e tinha um gosto especial pelos lábios das pessoas, gosto que aprendi com o meu pai que me dizia que nos lábios das pessoas também se vê muitas palavras e silêncios. Consegui ler nos lábios de um dos homens de gravata a palavra crise. O terceiro sinal.
Como invasões, o alzheimer, o desemprego e a crise trouxeram a angústia, o medo, a pobreza, a miséria e a fome. No fim, a morte. Não a do meu avô. A da minha mãe, por não ter o que nos dar de comer. O meu pai a tomar conta de nós e do avô. Vivíamos numa casa sem janelas, numa cidade sem luz e sem jardins. Essa cidade chamava-se portugal.
O meu pai via-nos com as palavras e com as mãos, mas a fome foi mais forte e, um dia, levou-nos, ao meu avô e a nós, a uma casa onde acolhiam pessoas mais velhas e crianças. Tínhamos sete anos e fazia muito frio. O meu pai olhou para nós e não chorou. É por te amar imensamente que te minto. Acreditamos no início. Foi a última vez que vi o meu pai. O meu avô era levado por senhoras de bata branca ou azul ou verde, já não me lembro perfeitamente da cor da bata que vestiam. Eram senhoras simpáticas e bondosas. Bem-aventurados os pobres porque deles é o Reino dos Céus? Três dias depois, eu penso que o meu avô morreu, porque deixamos de ouvir o relógio a dar as três horas e as casas e as pessoas pareciam cada vez mais tristes.
Passaram muitos anos sobre aquele natal inesquecível. Agora sou adulta, mas a minha irmã ainda tem seis anos.
O médico vem acordar-me e dá-me os bons dias e um copo com água e outro com umas três pílulas de diferentes cores e formas. Diz para eu tomar todas sem fazer birra. Obedeço.
Volta a sair do quarto, ouve-se a fechadura a dar duas voltas e, por fim, o trinque, o latido dos conscientes. Consciência.
Levanto-me da cama. A minha irmã continua deitada, aparentemente tranquila. Deixo-a estar a dormir e a quase sonhar.
Vou até à janela e vejo a manhã. Frio e gelo. O jardim, completamente abandonado, com árvores tombadas, ervas daninhas, poças de água, lama, permanece em silêncio. Solidão. Ao fundo, à entrada do portão, vejo crianças a brincar, com um gorro vermelho na cabeça, enquanto gritam, penso eu, que não consigo ouvir nada através do vidro duplo e das grades. Se não gritam, pelo menos dizem palavras que eu aprendi a ler nos lábios: É Natal! É Natal! É Natal!
Três vezes o disseram e três vezes me lembrei do meu avô, da minha mãe e do meu pai.
Tenho medo de acreditar na Verdade, e por isso escrevo-me quando tenho laivos de consciência. Tenho medo de perder-me nas memórias da minha irmã que dorme. Tenho medo de tudo. Tenho medo.
As crianças correm e brincam, inocentes e felizes.
Se chorei nesse momento, não interessa.
Feliz Natal!

         

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