quarta-feira, 10 de julho de 2013

A Gaitada da Decadência. A Gaitada. A Decadência.


A Gaitada. A Decadência.
O FALHANÇO E O DESESPERO.

“Eh-lá-hô”, caro leitor amigo! Como estás? Como tens suportado este calor tão apanágio destes meses em que Zeus e Europa voltam a partilhar os olímpicos lençóis? Esperemos que te tenhas hidratado com o oxigénio do bom senso, esperemos que tenhas bebido e que bebas, pelo cão!, bastantes litros de bom gosto!
Ora, antes de começarmos com as nossas utópicas e quiméricas divagações, devemos, a ti, sempre fiel, astuto e prezado leitor, um pedido de desculpas por durante o mês de Junho e de Juno não termos dado sinais de vida, nem um breve “ora viva!, co’a breca!”, mas é que por entre as esquinas e os corredores surgiu a Vida, pedindo-nos satisfações sobre tudo e sobre nada. Fica aqui registado este sincero pedido de desculpas, que colocamos no teu regaço, leitor amigo. Porém, compensar-te-emos com as próximas palavras e com o libreto trágico-sentimental que para ti havemos preparado.
Desta vez, sempre leal e confidente leitor, trazemos-te, do fundo dos séculos do Humanismo e do Renascimento italiano, um libreto para uma opereta em três actos! Pelo cão! Vê bem o que fomos desencantar! Tanta poeira que vai pairar por estas palavras e símbolos! O cheiro a mofo dos séculos passados, que nada nos ensinaram, tendo em conta o caminho harmonioso e democrático que hoje temos como realidade!
Bem, é mister, então, darmos início a este Decadente quefazer!



A GAITADA. A DECADÊNCIA.


PERSONAGENS

Gaspar – o anjo caído das alturas do Capital.
Wolfgang Schaüble – o pai celeste e europeu do anjo caído



ACTO I

CENA I

O FALHANÇO E O DESESPERO
(ao som de um piano lacrimejante, o anjo caído Gaspar vomita o seu monólogo ultra-romântico, enquanto a lua voa alta e o país passa fome)

GASPAR - Tudo era tão belo e bom e justo quando o país aceitava de bom grado as sábias medidas que da Europa e da Troika vinham sob o formato Excel! Oh! Que lamurio este tão grande e profundo! Oh! Que desgraça a minha! Miséria, deuses do Olimpo! Miséria!
Não aguento mais este atroz sofrimento. Não aguento mais…

(o piano cala-se, o coro grego – constituído por elementos da coligação - surge com vozes tonantes e grandíloquas, entoando a Lacrimosa, parte integrante do Requiem de Mozart, enquanto as lágrimas, essas, caem duas as duas, quatro a quatro, pelos olhos do Gaspar anjo caído)

Saio do governo destroçado, desiludido com o meu país e com este executivo! Tenho pena que a minha sensibilidade estético-económica não tenha sido percebida. O alcance das minhas medidas não foi recebido com louros e tremoços! Saio! Saio! Demito-me! Demito-me! DEMITO-ME! E estas lágrimas que vêem caindo do meu rosto, são lágrimas de uma saudade que nunca vou sentir! De uma saudade tão hipócrita e triste que até os outros anjos e arcanjos e querubins e serafins choram comigo. Choramos todos! E chegamos a este número: 4 mil milhões de lágrimas! 4 mil milhões de sorrisos que não me deixaram distribuir pelos portugueses amigos e queridos, pelos portugueses que nos amam, que em nós acreditam! Tenho vergonha deste governo e desta coligação que não me entende! Oh miséria das misérias! E agora, em escabelos, grito e choro por saber a verdade. DEMITO-ME! DEMITO-ME! DEMITO-ME! E eu, que tanto tinha para vos dar e para vos tirar. Tirar-vos-ia o dinheiro, as poupanças, as férias, os subsídios! Dar-vos-ia a fome, a miséria, a instabilidade, o desemprego. Porque me fizestes isto, país ingrato, governo increu?

(o coro retira-se, o dia começa a nascer e as estrelas brilham agora com mais intensidade, enquanto a lua, no seu arco de quarto crescente, apresenta-se laranja)

Eis o dia verdadeiro e único! Eis que caminho para a glória e para a eternidade. Vejo, ao fundo, no horizonte, o futuro e a esperança. É uma luz forte que retine e faísca e ofusca! É a luz da fachada do Banco de Portugal, é o cheiro caseiro e acolhedor do meu gabinete na administração. Já sinto o aroma das impressoras e das máquinas de fazer dinheiro! Oh glórias eternas das alturas celestiais! Oh maravilhas argentárias e agiotas! Como vos amo e vos quero! O tinir do cofre abrindo os seus segredos! As tabelas de limpeza dos wc, as tabelas de preços das máquinas de grab n’ go! Como tudo isso é belo e maravilhoso!

CENA II

(subitamente, o anjo Gaspar volta a entrar em agonia e desespero. Do céu começa a descer o ministro das finanças alemão - Wolfgang Schaüble – com uma armadura dos templários, tendo numa mão o ceptro de Otão I e noutra a coroa de Carlos Magno)


WOLFGANG – Não vás, Gaspar amigo! Não voltes aos húmidos e sombrios gabinetes onde se fala de milhões enquanto se comem caracóis, salsichas bávaras e cerveja da Silésia! Não voltes a esses lugares, Gaspar!
Deixa-te estar no cesáreo gabinete das finanças, onde, com pompa e circunstância, tens lutado ferozmente, ousadamente, contra o país desgovernado, inculto, bárbaro e mediterrânico! Esquece esse teu sangue meridional! Escuta e lembra-te de Mme. De Staël! Fica connosco, prometo-te que, da próxima vez, ganhas no torneio de matrecos e na macaca! Fica, Gaspar amigo. Fica!

GASPAR – (voz lânguida e sussurrada – surgem dois tenores que entoam o Ave Maria, de Schubert, muito suavemente) Não posso, Wolfgang que não és Amadeus, nem Mozart! Não posso! O país não permite, nem quer… Escuta-me demoradamente, pausadamente. Escuta este ínfimo sussurro, suspirado, segredado, sem temor, sempre pausado, falando de forma sossegada, sem pressas, sem medo. Escuta, Wolfgang, a voz das multidões que irrompem por São Bento, pelo Parlamento. Escuta! Não posso continuar! Não tenho forças para estas viagens em primeira classe entre Lisboa-Berlim-Bruxelas. Fatigam-me muito, essas demandas até ao Eixo. Demito-me de cabeça erguida, pois sei que fiz tudo de bem, fiz do melhor que havia a fazer, não fiz, Wolfgang?

WOLFGANG (voz paternal) – Fizeste um excelente trabalho, meu filho, meu orgulho, meu herói. Não volto a insistir. Se queres sair, sai, mas fica sabendo que estarei triste, com aquele sentimento que tu me ensinaste a ter: saudade. (uma lágrima jorra dos germânicos olhos de Wolfgang que não é Mozart)

GASPAR – Essa tua lágrima, meu pai banqueiro (talvez por herança dos séculos, anti-semita ou antimediterrânica), juntar-se-á àquelas 4 mil milhões que eu semeei ao vento por este país fora. Ninguém as acolheu, mas eu, pai argentário, levá-las-ei comigo para a vida.

CENA III

(Entretanto, Wolfgang, definitivamente não Mozart, vai descendo do céu, volta a colocar as asas no anjo Gaspar, que se tornara num anjo caído aquando da sua estada no Estado)

WOLFGANG – Vem, agora, comigo, Gaspar anjo, voltaste a ganhar as tuas asas. A santidade do teu serviço fez-te ascender, novamente, às olímpicas e augustas esferas! Homens como tu facilmente ascendem a anjos e, depois, a deuses! Deuses do Capital e da Fome Capital! AVE, a ti, ó Gaspar Grande e Magnânimo!

(Wolfgang, aquele que nunca será Mozart, coloca sobre os ombros de Gaspar, agora anjo e semideus, o manto escarlate de Napoleão, na mão esquerda o ceptro de Otão I e na direita a coroa de Carlos Magno – Enquanto Gaspar recebe estas augustas insígnias, o coro grego surge entoando a música de coroação dos ingleses reis – Zadok the Priest – de Georg Friedrich Händel )

GASPAR – (discursando de forma eloquente, o cretino) Que honras e glórias são estas que agora me colocas, Wolfgang pai das europeias praças? Que vetustos feitos foram os meus? Que grandiloquência é esta que agora me persegue e acompanha pelos séculos? (soltando mais umas quantas lágrimas)

WOLFGANG – São os prémios de quem alcança a imortalidade pelo bem que fez! Não vais para a ilha dos Amores, pois esta está reservada para Berlusconi, e Camões não gosta lá muito do teu discurso, por isso, escusas de adoptar esse tom épico. Restringe-te ao ultra-romântico que és, primo de Eusebiozinho Eciano!
Vem, vamos cumprir o teu destino, meu bravo lutador!

GASPAR - (adoptando novamente os seus vagares ultra-românticos e senis) Graças, graças mil te dou, a ti, por me teres coroado com tão belos paramentos. Mas sinto-me triste e desolado por deixar o meu país, o país que não compreendeu o meu linguajar. O país que me cuspiu nos supermercados por um pedaço de pão! O meu país. Saio do governo triste, mas tranquilo, pois fiz o melhor que existe no mundo: Cortes. Cortei com uma entrega e dedicação totais! Lembro-me das noites em que dormia pensando nos cortes e na alegria, IMENSA, que era para mim anunciá-los! Nunca percebi porque é que as pessoas se revoltaram contra mim! Nunca… (volta a entrar o coro grego, desta vez, a Lacrimosa é entoada de forma barroca, estonteante) Assim, DEMITO-ME! DEMITO-ME! DEMITO-ME! Basta de incompreensão e de gente mal agradecida.
Agora, Wolfgang, meu Mozart, meu fofo, caminho em direcção ao horizonte luminoso, com um brilho nos olhos bastante ambivalente: no olho esquerdo levo a tristeza e a repulsa, no olho direito a alegria e a paz.
           
(Gaspar tenta levantar voo com as suas novas asas, mas o peso da imortalidade, da glória e da fama é tanto que a santidade das capitalistas e divinas alas ameaça a ruptura. Então, Wolfgang, Mozart sabe-se lá do quê, empurra Gaspar até ao horizonte luminoso, até à fachada do Banco de Portugal – entretanto, o coro grego surge entoando cânticos de glória a Deus nas Alturas e Glória a Gaspar nos bancos)

  O pano caiu, leitor e espectador fiel e amigo, Ainda podemos ouvir o coro cantando, entoando maravilhas. Eis o final do ACTO I. Por agora, atemo-nos a este acto. Digere-o, pensa-o, pois, em breve, um segundo acto surgirá, luminoso, altivo, imortal!
Prometemos-te, no ACTO II, Paixões ardentes, amores desencontrados!
Vamo-nos rir ou chorar com tamanha tragicomédia?








1 comentário :

  1. Simplesmente excelente esta gaitada,com que José Vieira nos brinda depois do seu "retiro".
    Um abraço
    Joao Valdoleiros

    ResponderEliminar

Obrigada por partilhares a tua opinião connosco!